quinta-feira, 27 de março de 2008
OPUS DEI
Perguntas, respostas e algumas dúvidas inquietantes sobre uma organização católica que prefere viver no silêncio
José Francisco Botelho
Na Espanha, durante os anos 40, era raro passar por um grupo de homens sem avistar um cigarro. O tabagismo era comum à maioria da população masculina, como bem sabia o sacerdote Josemaría Escrivá de Balaguer, fundador da organização católica Opus Dei. Tanto que, em 1944, quando foram ordenados os 3 primeiros padres do grupo, Escrivá ficou preocupado ao perceber que nenhum deles fumava. Afinal de contas, o Opus Dei pretendia ser (nas palavras do fundador) "uma injeção intravenosa na corrente sanguínea da sociedade". Ou seja: uma legião de homens e mulheres comuns, que se misturassem ao mundo sem se distinguirem por sinais exteriores - mas que fossem, todos, fiéis a um mesmo objetivo e obedientes a uma mesma direção espiritual. Se sentassem na mesa de um café de Madri, aqueles 3 padres recém-ordenados poderiam chamar a atenção pela inusitada ausência de cigarros. Pareceriam diferentes. Escrivá resolveu o problema com uma decisão categórica: determinou que pelo menos um dos jovens adquirisse, de propósito, o vício do tabaco. O escolhido para executar a missão foi Alvaro del Portillo, que mais tarde sucederia Escrivá no comando da organização.
Essa história, famosa nos círculos internos da instituição, ilustra uma das características mais notórias do Opus Dei - expressão latina que significa "Obra de Deus". Seus membros podem ser motoristas de táxis, donos de lavanderias, banqueiros, médicos, editores de revistas. Embora conte com padres e bispos em suas fileiras, o grosso da organização é formado por membros laicos, que não usam hábitos monásticos, uniformes característicos ou crachás de identificação. Em vez de se isolarem atrás dos muros de um mosteiro, os membros da Obra, como é chamada entre os íntimos, fundem-se à sociedade, como as peças de um mecanismo invisível, para realizar o grande objetivo de seu fundador: "transformar o mundo de dentro para fora".
Para milhares de católicos, o Opus Dei é um dos fenômenos mais admiráveis da Igreja contemporânea, um movimento que promove o bem e santifica a humanidade. Para outros, o grupo desperta sentimentos que vão desde a desconfiança até a hostilidade aberta. Segundo os detratores mais ferozes, os objetivos piedosos do grupo são apenas uma fachada, escondendo uma organização implacável, inescrupulosa e autoritária. A versão mais radical dessa crítica surgiu em 2003, nas páginas de O Código Da Vinci, de Dan Brown. O best seller mostra a Obra como um onipresente partido de fanáticos religiosos, vilão de um complô internacional e responsável por assassinatos para impedir a revelação de segredos sobre a vida de Cristo. Uma imagem que ganhou tintas ainda mais fortes com a estréia da versão hollywoodiana do romance. Verdade seja dita, esse relato é o principal responsável por hoje se escrever e falar tanto sobre a Obra. Afinal, em termos numéricos, o Opus Dei está longe de ser um fenômeno do catolicismo. Tem cerca de 85 mil seguidores, entre leigos e sacerdotes, uma ninharia se comparado aos cerca de 120 milhões de fiéis do movimento da renovação carismática. Não fosse o livro - e também os boatos de que o grupo agia nos bastidores da escolha do papa Bento 16, no ano passado -, a Obra de Deus provavelmente estaria vivendo na mesma sombra em que se escondeu nos últimos 70 anos.
O sanguinário Opus Dei de Dan Brown, porém, é um personagem de ficção - até adversários públicos do grupo admitem que o retrato pintado pelo Código tem cores berrantes demais. Mas acrescentam: atrás de toda lenda há um traço de verdade. "O livro exagera na periferia, mas sugere algumas verdades centrais", diz Jean Lauand, professor titular de filosofia da USP, que pertenceu durante 35 anos à Obra e é um dos 3 autores de Opus Dei: Os Bastidores. Os defensores retrucam: o Opus Dei de O Código Da Vinci não tem absolutamente nada a ver com a realidade, e ponto final. "Aquilo não somos nós. Se as pessoas percebessem como somos normais, não haveria tanto interesse no assunto", diz Beatriz Willemsens, de 30 anos, que é membro da Obra desde 1995. No meio da controvérsia, resta apenas uma unanimidade: hoje, a Obra de Deus é a instituição mais intrigante - e uma das mais poderosas - no corpo da Igreja Católica. Para decifrar a polêmica, é preciso entender como surgiu, o que pensa e como se comporta esse organismo complexo.
O que é o Opus Dei?
O sacerdote de 26 anos estava no claustro de um mosteiro, em Madri, remexendo as anotações de seu diário. Era o dia 28 de outubro de 1928 e ele acabara de rezar a missa e agora se recolhia para meditar. De repente, levantou o rosto e seu olhar se perdeu no infinito. O que aconteceu nos minutos seguintes, de acordo com o dogma da Igreja, foi um milagre. O sacerdote era Josemaría Escrivá de Balaguer. E o que seus olhos contemplaram, segundo contaria mais tarde, foi uma iluminação enviada por Deus. Escrivá viu - essa era a palavra que sempre usava ao contar a história - homens e mulheres espalhados pelo mundo, realizando a "obra de Deus" e mudando os rumos da história. Imediatamente, compreendeu que transformar aquela visão em realidade era a missão de sua vida.
Lampejo de gênio ou linha direta com Deus, a idéia que surgiu naquela manhã era mesmo revolucionária. Na época, a cristandade estava radicalmente dividida em dois blocos: de um lado, padres, monges, cardeais e bispos; do outro, os "cristãos comuns", ou leigos. Aos primeiros, cabia levar uma vida santa. Aos demais, a maioria dos crentes, bastava ir ao confessionário, tomar a comunhão uma vez por semana e seguir acompanhado pela paz do Senhor. Escrivá, porém, viu que essa divisão não era completa. Para ele, o cristão verdadeiro tinha o dever de procurar a santidade em cada detalhe de sua vida: no trato com a família, no trabalho, ao entrar em um táxi. Como se Deus o estivesse olhando - e julgando - a cada segundo. O fervor relegado às missas de domingo deveria ser estendido aos 7 dias da semana e aos 12 meses do ano, 24 horas por dia.
Mas como espalhar essa idéia radical entre os milhões de cristãos ao redor do mundo? A solução encontrada por Escrivá - ou revelada por Deus, dependendo do ponto de vista - era criar, primeiro, um grupo de "super-heróis" espirituais, com profunda formação nas doutrinas cristãs e uma obediência total ao papa. Em vez de se isolar do mundo, como os monges e as freiras fizeram durante séculos, esses paladinos de Deus deviam mergulhar na sociedade, misturar-se, transformá-la de dentro para fora. O lema que Escrivá legou a seus seguidores é: "Seja santo. Santifique-se no seu trabalho. E santifique os outros com seu trabalho". Quando escreve um artigo para um jornal, prepara-se para uma reunião com a alta cúpula de sua empresa ou simplesmente dirige seu táxi pela cidade, o membro do Opus oferece mentalmente aquela ação a Deus e procura a perfeição, tanto moral quanto profissional - exatamente como se estivesse sendo observado por oniscientes olhos divinos.
Após receber sua epifania, Escrivá saiu em busca de seguidores. Mas o Opus teve uma juventude difícil. Em 1936, começaram os horrores da Guerra Civil Espanhola, que contrapôs o governo de inspiração marxista aos militares de extrema direita comandados pelo general Franco. As tropas de esquerda, que viam a Igreja como um de seus piores inimigos, incendiaram templos e massacraram milhares de padres e freiras. Para escapar aos fuzis do inimigo, Escrivá teve de se esconder com um grupo de seguidores na embaixada de Honduras, em Madri. Depois, procurou refúgio em um manicômio - durante 5 meses, fingiu-se de louco. Em 1937, fugiu para a França com seus primeiros adeptos, empreendendo uma perigosa jornada pelos montes Pirineus - a pé. O recém-nascido Opus Dei só retornaria à Espanha dois anos depois, quando Franco derrotou os comunistas e virou ditador. Sua relação com o generalíssimo, conhecido pela simpatia ao ideário fascista, seria apenas a primeira de outras tantas polêmicas em que Escrivá se veria metido. Quando morreu, em 1975, Escrivá era considerado ao redor do mundo uma figura quase mitológica, um emissário da vontade divina.
Hoje, a Obra controla bases em 62 nações. A tropa de elite é formada pelos numerários - membros que fazem voto de castidade e vivem em residências do Opus. A maioria deles segue carreira profissional, mas seus salários têm de pingar mensalmente nos cofres da instituição. Já os supernumerários podem casar, ter filhos e viver em suas próprias casas. Além disso, a organização conta com milhões de simpatizantes e colaboradores ao redor do mundo. Antes de ingressar no grupo, o membro passa por uma formação que inclui a doutrina católica, os livros de Escrivá e o aprendizado para a contemplação espiritual em meio à correria do mundo. Algo como um curso intensivo de santidade, que os detratores preferem chamar de lavagem cerebral.
O Opus Dei é uma organização ultra-conservadora?
A década de 1960 foi a época em que a Igreja Católica resolveu sair da geladeira. Em 1962, o papa João 23 convocou o Concílio Vaticano 2ºcom o objetivo de tornar o catolicismo mais adequado aos tempos modernos. Quando foi encerrado, 3 anos mais tarde, o concílio mudara conceitos petrificados havia centenas de anos. "A Igreja deixou de ver a si mesmacomo único caminho para Deus", diz o teólogo Fernando Altemeyer Júnior, da PUC de São Paulo.
Para os defensores do Opus Dei, o Vaticano 2º nada mais fez do que referendar as idéias de Escrivá. Foi naquele período que a Igreja lançou o "chamado universal à santidade". Ficou estabelecido que a tarefa de viver como santo não era monopólio de padres e freiras, mas dever de todo católico sincero. Escrivá já defendia essa filosofia havia 4 décadas - aliás, sempre sob olhares de reprovação de católicos tradicionalistas. "Naquela época, o Opus era encarado como um movimento revolucionário e liberalizante, pois desafiava o monopólio do clero", escreve John Allen Jr., um dos maiores especialistas em catolicismo, no enciclopédico Opus Dei: os Mitos e a Realidade. Em 1948, Escrivá e seus seguidores chegaram a ser denunciados à Congregação para a Doutrina da Fé, antiga Inquisição. Por pouco, não foram julgados como hereges.
Críticos rebatem que, embora concordasse com aspectos do Vaticano 2º, Escrivá achava que a liberalização da Igreja ia longe demais. As mudanças na liturgia o teriam deixado especialmente irritado. Até os anos 60, a missa era rezada em latim, com os padres de costas para os fiéis. Depois do concílio, a celebração passou a ser feita na língua de cada país, com padre e público cara a cara. O Opus Dei, contudo, conseguiu uma licença especial para se ater ao rito antigo. Outra medida que teria ficado atravessada em sua garganta foi a abolição do Index Librorum Prohibitorum, o famoso "Índice dos Livros Proibidos". Criado no século 16, continha leituras consideradas "perigosas" para a fé e a moral dos cristãos.
No meio da disputa teológica, a Obra se viu numa posição surreal. Sem mudar sequer uma de suas opiniões sobre o mundo, o Opus Dei saiu do Vaticano 2º transformado: o grupo entrou a década de 1960 sendo considerado uma força jovem e liberal da Igreja e terminou visto como uma das alas mais conservadoras e rabugentas do catolicismo. A ponto de até hoje ter uma lista de livros desaconselhados, que inclui todas as obras do Index e acrescenta outras - como os romances de James Joyce e os trabalhos de Karl Marx. A função dessa lista é uma encruzilhada em que as versões se chocam de frente. Segundo Os Bastidores, o Opus classifica livros seguindo uma gradação de 1 a 6: no primeiro nível estariam as leituras permitidas a todos, e no último, as totalmente proibidas. No meio, ficariam as que só podem ser abertas com permissão dos diretores. O Opus Dei responde que o índice é apenas orientador: serve para dar uma idéia do que trata cada obra e não proíbe nada. A reportagem da SUPER visitou a biblioteca da Obra no Centro Mirador, em Porto Alegre. Encontrou livros de Thomas Mann, Tolkien, Ernest Hemingway, publicações científicas e, claro, ensaios sobre virtudes cristãs. Perguntei se os membros podem tirar das estantes o que bem entenderem. "Eu nunca proibi ninguém de ler nada", afirmou Renato Vieira, diretor do centro. Após uma pausa, acrescentou: "Só temos um certo cuidado para que as pessoas estejam preparadas para o que vão ler".
Quem tiver tempo para conferir os 60 mil itens no índice do Opus - disponível no site www.opuslibros.org - vai encontrar algo no mínimo curioso: dois livros escritos por Joseph Raztinger, o hoje papa Bento 16. Tod und Ewiges Leben e Die Geschichtstheologie des Heiligen ("Morte e Vida Eterna" e "A Teologia da História de São Boaventura") foram redigidos entre as décadas de 1950 e 1970, quando Ratzinger tinha fama de ser um teólogo progressista, bem diferente do conservador que é hoje. O primeiro texto é uma reflexão sobre o fim do mundo, a morte, o céu e o inferno. O segundo, a tese de doutorado de Ratzinger, estuda as obras de São Boaventura, um polêmico filósofo da Idade Média. Hoje Ratzinger mudou de time e está no rol dos falcões do Vaticano. E essa ortodoxia o aproximou bastante do Opus Dei. Mas isso é coisa que você vai saber em detalhes mais adiante.
Os seguidores do Opus Dei são obrigados a se flagelar?
Ao chegar em casa, o brutamontes se ajoelha na sala e tira as roupas. Primeiro, espia a coxa, onde está amarrado o cilício, arame com pontas de ferro que pressionam a carne. Insatisfeito com as manchas roxas que o instrumento deixa na pele, ele aperta ainda mais o arame. Em seguida, apanha um chicote pesado e golpeia violentamente as costas. O sangue começa a escorrer. O penitente é Silas, "monge" do Opus Dei retratado em O Código Da Vinci. A cena atingiu a imagem pública da Obra como bomba. Na cabeça de muita gente, a Obra passou a ser vista como uma confraria de masoquistas.
Até críticos ferozes concordam que a cena é exagerada. Em primeiro lugar, porque não existe monge da Opus Dei. Monges, por definição, vivem isolados em mosteiros. Como a intenção do Opus Dei é se misturar à sociedade, a Obra tem apenas leigos e padres. O instrumento usado pelos membros da Obra tampouco é um chicote pesado, mas uma pequena corda com nós, conhecida como "disciplina", que geralmente não deixa marcas na pele. Mas o amor de Silas pelo flagelo tem, sim, um pezinho na realidade.
Para Escrivá, o corpo era um vespeiro de tentações - como a gula, a preguiça e, claro, o desejo sexual. A penitência física servia para matar o pecado na raiz e controlar instintos na marra. Hoje em dia, mesmo católicos praticantes acham essas idéias difíceis de engolir, mas, no passado, a mortificação foi praticada por muita gente. Uma das personalidades que costumavam chicotear as próprias costas é madre Teresa de Calcutá. A freira albanesa, Prêmio Nobel da Paz por seus trabalhos junto aos pobres da Índia, via na mortificação uma maneira de compartilhar e compreender o sofrimento dos miseráveis. Outro exemplo: durante todo o tempo em que ocupou o trono de são Pedro, de 1963 a 1978, o papa Paulo 6º usou uma camisa com correntes pontiagudas sob as vestes episcopais. E até hoje o cilício é comum em algumas ordens religiosas, como as Carmelitas Descalças e os Irmãos Franciscanos da Imaculada Conceição. O Opus argumenta: se eles podem, por que nós não?
Para a maioria dos numerários, o cilício é um hábito corriqueiro. Eles passam no mínimo duas horas por dia com o arame na coxa. Uma vez por semana, o diretor do centro determina um "dia da guarda" - em que se deve redobrar os esforços para ser santo. É nesse dia que o numerário tranca a porta do quarto, e enquanto reza o pai-nosso ou a ave-maria golpeia as costas e nádegas com a disciplina. "Algumas pessoas passam horas malhando para ficar bonitas. Nós oferecemos esforço e sofrimento a Deus. Qual a diferença?", diz Renato Vieira.
Apesar do favoritismo nas manchetes e na imaginação popular, a mortificação é apenas uma das controvérsias que cercam a vida no Opus. Segundo críticos (e eles são muitos), a Obra exige de seus membros obediência cega - a maior parte das acusações contra a ordem é encampada por grupos de ex-membros, como o americano Odan, o espanhol Opuslibros e o brasileiro Opuslivres.
Os relatos dão conta de que o funcionamento dos centros é semelhante ao de um miniestado totalitário. O simples ato de ver um filme ou visitar um amigo deve passar pela censura dos diretores. A delação de desvios é incentivada sob o eufemismo de "correção fraternal". Homens e mulheres vivem em centros separados - e elas são aconselhadas, embora não obrigadas, a dormir deitadas em tábuas acolchoadas colocadas sobre o chão. Eles dormem em colchões. Quem tenta abandonar o grupo, afirmam ex-membros, é ameaçado com o inferno. E, para quem está envolvido até o pescoço com a fé, essa é uma ameaça das mais terríveis.
O Opus Dei está infiltrado em governos mundiais?
Na década de 1940, o então chefe dos jesuítas, padre Vladimir Ledochowsky, enviou um memorando para o Vaticano. Ele escrevia para comentar sobre uma ordem novata que ganhava espaço na Espanha. Eram bons cristãos, dizia. Todos preocupados com a religião. Mas o real intuito da carta perdia-se nas entrelinhas. Casualmente, Ledochowsky deixou clara sua opinião. Achava que o Opus tinha "o desejo secreto de dominar o mundo".
O documento de Ledochowsky teve dois efeitos. Primeiro: inaugurou a birra entre Opus e jesuítas, que dura até hoje (nos anos 80, outro líder jesuíta, Pedro Arrupe, afirmaria que "vendo o que o Opus Dei é hoje, vejo o que nós fomos no passado e nunca deveríamos ter sido". Fundada no século 16 para evangelizar a Ásia e as Américas, a Companhia de Jesus também foi acusada de armar complôs maquiavélicos e manipular governos). Segundo: deu o tom que dominaria a "mitologia opusdéica" nos anos seguintes. No livro O Mundo Secreto do Opus Dei, o jornalista canadense Robert Hutchinson afirmou que o Opus é dono de uma fortuna de 400 bilhões de dólares. Essa riqueza teria sido usada para, entre outros objetivos, financiar o sindicato Solidariedade, na Polônia, que teve papel central na derrubada do comunismo nos anos 80. O "complô" explicaria a amizade entre o Opus e João Paulo 2º - que era polonês e anticomunista. Tudo, claro, feito em completo e profundo sigilo.
Histórias nunca confirmadas como essa renderam à ordem o apelido de Octopus Day, um trocadilho com a palavra octopus ("polvo", em inglês). Com sua filosofia de mudar o mundo de dentro para fora, a Obra estaria é estendendo seus tentáculos para dentro das escolas, das universidades e dos governos. Dinheiro nunca foi problema. Não são exatamente 400 bilhões de dólares. Mas, nas investigações para o livro Os Mitos e a Realidade, John Allen avaliou a riqueza do grupo em 2,8 bilhões de dólares - o patrimônio inclui uma sede de 60 milhões de dólares em Manhattan. É uma bela bolada, que mantém faculdades, hospitais e escolas ligadas ao Opus Dei. Todos com nomes genéricos, que escondem a filiação religiosa. Nada de Colégio Sagrado Coração ou Hospital de Santa Helena. A ordem prefere nomes como Universidade de Navarra, na Espanha, ou Heights School, em Washington, onde estudam os filhos de diversos congressistas do Partido Republicano.
Laços com a política também são cultivados. Na rua K de Washington, onde todos os lobistas que atuam no Congresso americano têm seus escritórios, o Opus Dei mantém uma salinha. Não que isso seja essencial para os contatos com o alto comando dos EUA. Pelo menos dois senadores e um ministro do Supremo Tribunal são bastante próximos de padres da Obra. Em outras partes do mundo, existem casos de membros do Opus galgando espaço nos altos escalões do governo. O ministério de Franco, por exemplo, tinha 3 numerários. O governo de Lech Kaczynski, da Polônia, tem em seu gabinete um ministro que pertence ao Opus. Kaczynsky se elegeu em 2005 com a promessa de trazer de volta os valores cristãos para a política do país - filosofia que parece seguir de perto uma das máximas de Escrivá: "Você já pensou em quão absurdo é deixar de lado o seu catolicismo ao entrar em uma universidade, em uma associação profissional ou no Congresso, como quem pendura um chapéu ao lado da porta?" O jornalista espanhol Jesus Infante chegou a chamar o grupo de "máfia santa" - uma espécie de "Internacional Conservadora", que não mede escrúpulos para modelar a sociedade à sua visão de mundo. No Brasil um dos políticos mais ligados à Obra de Deus é o candidato a presidente Geraldo Alckmin, que em seus tempos de governador de São Paulo costumava assistir a palestras sobre doutrina cristã ministradas por numerários e se confessar com um padre do Opus. Alckmin, porém, nega fazer parte da ordem.
O Opus Dei comanda os bastidores da igreja?
Durante 5 décadas, a Obra cresceu em silêncio. Mas tudo mudou em novembro de 1982, quando João Paulo 2º transformou a Obra em "prelazia pessoal", figura de Direito Canônico criada na década de 1960. O Opus ganhou um grau de independência inédito. Seus membros passaram a ser subordinados não aos bispos de suas cidades, mas diretamente ao chefe supremo da organização, o "prelado", posto hoje ocupado pelo espanhol Javier Echevarría. E o prelado, por sua vez, responde apenas ao papa.
A decisão atraiu holofotes nem sempre confortáveis para a discreta organização. Muita gente opinou que o posto de prelazia pessoal havia conferido à Obra um poder desmesurado - o jornalista americano Kenneth Woodward, especialista em religiões, escreveu que o Opus Dei estava se tornando uma espécie de "Igreja dentro da Igreja". Ainda em 1982, Karol Wojtyla oficializou a idéia de que a Obra foi fundada por vontade divina - para a Igreja, Deus realmente tocou a mente de Escrivá naquela manhã de 1928. Uma década depois, o sacerdote espanhol foi transformado em beato e depois em santo, em um processo que alguns chamaram de ilegítimo e escandaloso. A beatificação de Escrivá foi uma formidável demonstração de força do Opus Dei dentro do Vaticano - e o entusiasmo de João Paulo 2º pelo grupo começou a assustar católicos liberais. Para eles, o sucesso dos seguidores de Escrivá é um sinal de que a ala conservadora está novamente tomando as rédeas da Igreja, depois da liberalização que se seguiu ao Vaticano 2º. O tamanho desse poder é motivo de polêmica. John Allen afirma que a Obra tem 20 membros nos altos escalões, contra 24 dos arqui-rivais jesuítas. Jean Lauand rebate dizendo que o enorme poder do Opus na Cúria não nasce do tamanho, mas de sua organização política.
O papa Bento 16 ainda não deu mostras tão claras de favoritismo, e sua relação com o Opus é pouco definida. Mas o Ratzinger da "fase conservadora" sempre teve uma ligação amigável com o Opus. Em 2001, quando era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o então cardeal lançou o polêmico documento Dominus Iesus, em que dizia que todas as outras religiões são "deficientes" em comparação com o cristianismo. Foi a partir daí que sua fama de ultra-ortodoxo cresceu e as obras progressistas que escrevera na juventude foram colocadas de lado pelos especialistas. Na conferência em que apresentou o Dominus Iesus ao mundo, Ratzingerestava sentado ao lado do monsenhor Fernando Ocáriz - o segundo na hierarquia mundial do Opus Dei e co-autor do texto-bomba. O papel que a Obra de Deus terá no papado de Bento 16 - e, por conseguinte, no futuro da Igreja - é mais um enigma esperando por solução.
Operação Limonada
"Se a vida lhe dá um limão, faça uma limonada". Essa foi a conclusão a que chegaram os 12 homens reunidos no quartel-general do Opus Dei em Roma, em janeiro de 2006. Os líderes do grupo tinham viajado para a cidade com um objetivo: preparar-se para o estrago extra que o filme O Código Da Vinci causaria na imagem do grupo.
Nascia ali a "Operação Limonada". O Opus Dei decidiu aproveitar a péssima publicidade do filme para lavar sua imagem e, de quebra, fazer um pouco de proselitismo. A estratégia era bem simples: em vez de fugir de entrevistas, aceitá-las para mostrar o lado simpático do grupo.
A operação já estava sendo preparada desde 2003 , quando Dan Brown lançou seulivro. Desde então, a Obra vem se abrindo gradualmente à curiosidade alheia. Exemplo disso é o livroOs Mito e a Realidade, de John Allen Jr., repórter considerado o principal especialista em Vaticano no mundo. Para escrevê-lo, Allen entrevistou centenas de membros e diretores. Os limões deram suco: a obra é, de longe, o mais favorávelretrato do Opus Dei já escrito por um não-membro.
A SUPER também bebericou nesse copo. O escritório de imprensa do Opus respondeu a todos os e-mails enviados e nenhum dos membros procurados se recusou a falar. Porém, sintomas do famoso sigilo foram sentidos quando pedimos para ver os "documentos secretos" - publicações religiosas e administrativas cuja leitura é vedada a não- membros. Para escrever seu livro, Allen consultou trechos dos documentos. Disse não ter achado "nada de terrível ou explosivo".
A SUPER não pode confirmar ou negar a afirmação, já que a diretoria nacional da Obra de Deus preferiu manter os textos em segredo.
A limonada, como se vê, ainda tem um gosto levemente azedo.
Seis palavras para entender o Opus Dei
CILÍCIO
Corrente de metal com pontas que pressionam a pele.
Os membros do Opus o utilizam na coxa, duas horas por dia.
APITAR
Gíria interna usada quando alguém se torna membro. O termo, inventado por Escrivá, é referência ao barulho de uma chaleira com água prestes a ferver - metáfora para a "ebulição" espiritual de quem decide dedicar a vida a Deus.
PRELAZIA PESSOAL
Figura de Direito Canônico, dá aos seus membros o direito de seguir ordens do prelado, que mora em Roma, em vez de obedecer à autoridade católica regional. Nas dependências da ordem, por exemplo, as cerimônias e os aconselhamentos não precisam seguir orientações do bispo local.
NUMERÁRIOS
Fazem voto de castidade e vivem nos centros da Obra.
Alguns trabalham em tempo integral para o grupo, outros têm suas profissões. Os numerários detêm postos de liderança e são responsáveis pela expansão do grupo - são eles que fundam novos centros e dão formação espiritual a outros membros.
SUPERNUMERÁRIOS
São os membros que vivem em suas próprias residências e são livres para casar. Contribuem financeiramente com o Opus, mas têm patrimônio próprio. Dos 85 mil membros do grupo, cerca de 70% são supernumerários.
ASSOCIADOS
Membros que fazem voto de celibato, como os numerários, mas vivem em suas próprias casas ou com a família.
Todas as polêmicas de são Escrivá
A personalidade de Escrivá
Paternal e compreensivo. Controlador e paranóico. Os testemunhos de quem conheceu Escrivá costumam ser conflitantes. Segundo o ex-membro Miguel Fisac, que conviveu com Escrivá, o fundador da Obra costumava tratar a todos como inferiores. María Angustinas Moreno, numerária de 1959 a 1973, descreveu o fundador como um "ditador arrogante". Quando Escrivá morreu, ela comentou: "Não sabia que algo tão humano quanto a morte poderia acontecer com ele". Do outro lado, amigos de Escrivá garantem que ele era bem- humorado, corajoso, dotado de grande compaixão e dono de uma paciência de Jó.
A canonização de Escrivá
O fundador do Opus Dei ganhou sua auréola 26 anos depois de morto. Para se ter uma idéia: Joana d'Arc teve de esperar 6 séculos para virar santa. A pressa fez o americano Kenneth Woodward, especialista em religiões da revista Newsweek, acusar o Opus de usar a influência para comprar um atestado de santidade. Três ex-numerários que haviam conhecido Escrivá na intimidade e tinham uma visão crítica dele foram proibidos de depor no processo de canonização. E o arcebispo italiano Luigi de Magistris, um dos únicos no júri que se opôs à decisão, acabou demitido pelo Vaticano. O resultado da polêmica é que muitos vêem Escrivá como um "falso santo" - opinião que certamente é rejeitada pelas 300 mil pessoas que, em 2002, foram à praça de São Pedro aplaudir o anúncio da canonização.
Escrivá e Franco
"Escrivá, com toda certeza, era fascista", diz Diane DiNicola, do grupo Opus Dei Awareness. O fundador do Opus Dei teria escrito cartas a Franco e aproveitado o clima ultracatólico do governo para aumentar seu poder. Abertamente, Escrivá jamais defendeu o regime franquista. "Se o Opus Dei se meter em política, eu o abandonarei imediatamente", escreveu.
Escrivá era anti-semita?
Em 1992 um ex-membro do Opus Dei afirmou que Escrivá lhe dissera: "Hitler foimaltratado pela opinião mundial. Ele jamais poderia ter matado 6 milhões de judeus. No máximo, foram 4 milhões". Os arquivos do Opus Dei oferecem uma evidência em contrário. Numa palestra gravada em 1945 Escrivá diz: "Amo os judeus, pois amo Jesus loucamente, e Jesus é judeu".
Fonte: http://super.abril.com.br/superarquivo/2006/conteudo_141479.shtml
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